sábado, 28 de fevereiro de 2009

A CONTAR HISTÓRIAS


Entrou em casa ao final da tarde, tirou os sapatos e começou a dançaricar com o prazer de sentir o chão firme nos pés cansados. Olhou-se ao espelho e cumprimentou-se. Ficou ali quieta, por uns segundos a fixar a própria imagem e descobriu um brilho nos olhos. Apróximou-se, mais, e mais, até quase colar o nariz no nariz. Olhou-se olhos nos olhos prolongadamente, como se estivesse a ter uma conversa.
Depois reparou no papel sobre a cama e acenou com a cabeça. Amarrotou-o nos dedos e atirou-o para longe.

Sentou-se na secretária e começou a escrever palavras temperadas a gosto com Sylvain Chauveau:

"Não te tenho escrito porque carrego nos dedos um destino novo, inventado à pressa antes do despertar do abandono. E os dedos assim ocupados, não deixam espaço senão para páginas em branco. Muitas páginas em branco mas nenhuma vazia. Vou colocando umas sobre as outras a cada vez que penso escrever-te. E vão-se tornando uma resma branca de pensamentos.
Os sábados e domingos agora estão cheios de ervas a crescer na berma dos passeios e há muitos passaritos a esvoaçarem junto à minha janela à espera das migalhas do pão que lhes atiro. E haverá papoilas no baldio atrás da casa. Aos sábados e domingos podemos disfarçar a dor e fingir que não há solidão a habitar-nos o peito. Podemos passear pela marginal e inventar conversas de casal acostumado. Que dizes? Tu chegas com aquele ar sombrio do costume, como se fosses um estranho que eu nuca tivesse visto nu e eu, nervosa, finjo que não estou sorridente e ocupada a despertar desejos. Que te parece? Caminhamos harmoniosamente, como se saídos da missa, e podemos regressar antes que eu mergulhe verticalmente no sonho.
Vês!... As minhas páginas brancas são feitas de paisagens claras e ternuras. É também por isso, que não te tenho escrito. Prefiro manter o passado num arquivo até ao dia em que possa exumá-lo, enquanto vou dedilhando a ilusão suspensa nos dedos, de um destino novo. Desatenta de ti. Sem noites desoladas. Sem linhas nas palmas das mãos a ditarem-me a sina. Fiz um acordo com a felicidade: de partilharmos a vida com simplicidade e sem qualquer compromisso - eu não exijo dela, ela não exige de mim.
Já anoiteceu! Os fins de semana correm tão depressa! É como ir tomar um café e voltar!
Talvez te escreva novamente, um dia destes..."

Deixou cair a caneta sobre a folha. Desligou o som, apagou a luz e foi-se... os pés descalços.
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Never Let Me Down Again - Sylvain Chauveau



sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A CONTAR HISTÓRIAS


Ela sentou-se sobre a cama. Passou os dedos pelos cabelos desgrenhados e esfregou os olhos. Agarrou na caneta e começou a escrever:


"Não te tenho escrito porque causa das consoantes. Consoante o tempo, consoante a vontade, consoante isto, consoante aquilo. São muitas as consoantes que têm andado a abalroar-se nos meus dedos. E eu com medo que tudo se transformasse em palavras sem sentido algum. Tenho andado a olhar para o outro lado das coisas, sabes, o outro lado. E é então que percebo que não existes nesse outro lado das coisas. Nem tu, nem a tua sombra. A príncipio ainda procurei por ti, mas nem sinal! Ainda passei algum tempo debruçada na janela, a pensar que poderias estar a observar-me de algum ponto distante ou escondido. Mas nada! Senti-me tentada a escrever-te mas fumava um cigarro de cada vez que a tentação surgia. Também por causa dos pontos finais. Sim, também é por causa deles que não te tenho escrito. Gela-me o medo de ter de colocar o último ponto. O ponto final. Falta-me a intensidade, a frase certa, o momento apropriado e a delicadeza com que haverei de o colocar.
Não tenho palavras nem significados para descrever o que ando a observar no outro lado das coisas. É tudo tão genialmente simples e resumido e a cheirar a fresco! Mas para que lado hei-de eu fugir se me cansar? A felicidade também cansa. Caramba! Acordar todas as manhãs com a felicidade a dançar em bicos de pés sobre a nossa barriga!
Estou com pressa. Tenho de continuar a caminhar. Meti na cabeça que haveria de me encontrar com o homem da lua. Talvez te volte a escrever um dia destes..."

Algum tempo depois saiu para a rua e esqueceu a carta sobre o leito.
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Standing on the shore - Empire of the Sun

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

CONTARAM-ME UMA HISTÓRIA

Um velhote entrou numa clínica para fazer um tratamento dizendo-se muito apressado porque tinha um encontro que não podia adiar.
O jovem médico que o tratava quis saber o motivo de tanta pressa e o velhote explicou-lhe que tinha de ir ao asilo tomar o café da manhã com a sua esposa, que ela estava internada porque sofria da doença de Alzheimer em estado bastante avançado. Então o médico perguntou-lhe se ela iria ficar assustada por ele estar atrasado. Ao que o velhote respondeu: - Não. Ela não sabe quem eu sou. Há cerca de três anos que ela não me reconhece.
- Mas se ela não o reconhece nem sabe quem é, porquê essa necessidade de estar com ela todas as manhãs? - Questionou o jovem médico muito surpreendido.
O velhote sorriu, deu uma palmada nas costas do médico e disse: - "É verdade. Ela não sabe quem eu sou. Mas eu sei muito bem quem ela é. - E saiu apressado.
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(Desconheço a autoria)
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Moon and Moon - Bat For Lashes

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A PENSAR



"É muito fácil viver fazendo-se de tonto. Se o tivesse sabido antes, ter-me-ia declarado idiota desde a minha juventude, e poderia ser que, por esta altura, até fosse mais inteligente. Porém, quis ter engenho demasiado depressa, e eis-me aqui agora, feito um imbecil"
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A VIDA APETECE-ME


Cá vamos andando, na nossa vidinha normal. Com os frangos do costume, os remates audazes do de vez em quando, as apetências disfarçadas e a crise a arrebatar-nos as entranhas. À parte o arame farpado com que temos de encarar certos hábitos, agora caros para o nosso orçamento, cá vamos exemplarmente vivendo.
Eu, cigarra inocente - pois da formiga só conheço a história, por vezes mal contada ou até mal interpretada - do tédio só conheço o cheiro. Muito embora abomine os desperdicios, sou adversa a depressões.

Não gosto de adiar prazeres, sou assim, não sei ser de outra forma!

Mas são belos os poemas tristes:

- Tu e eu num amanhã, talvez;
Nós atarefados um com o outro na nossa solidão,
possivelmente;

Um dia destes regressaremos um para o outro,
com a promessa de não nos demorarmos;

Cansei-me da tua ausência, quero-te agora,
mas não me perguntes para onde vou;

Talvez tu fosses o abstracto mais belo que eu imaginava;

Se um dia me encontrares gelada
foi o amor que me matou;

Poderei estar extinta,
um dia que entres na minha vida;

Hoje não chove, por que sol passeias tu?;

Quando faço a cama por desfazer, sinto a tua falta;

Quero pacificar esta saudade,
que me deixa um sabor amargo;

É tão evidente a contrariedade de te querer
como esclarecido é o teu silêncio!

... -

Todas as tristes frase dos poemas tristes, são belas! Mas eu nunca tive jeito para a rima! Nem para tristezas prolongadas!
Que mais poderei dizer? Ando sem inspiração para a poesia!
Porque a vida anda a apetecer-me, como aquele cigarro acabado de acender.
É a cigarra a cantar e a dançar ao som de quem lhe bate palmas.
A fazer turismo na própria vida, só porque o açucar é doce e o sol é quente.

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Magnificent - U2 (faz parte do novo albúm, já disponível na net e é verdadeiramente mágnifica, aliás, como todo o albúm)


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

COISAS COMPLETAMENTE PARVAS


"...Travas-me o corpo movido pela ideia
São cem mil desejos e tu estás tão perto..." - Xutos e Pontapés
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Hoje estou morrinhosa!*
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Morrinha: aquele ronronar próprio dos gatos quando estão com afecto.*
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Afecto: uma mão carinhosa a passear pelos pelos e costados ou uns dedos a coçarem o lombo e atrás das orelhas.*
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Afecto: não tenho, só morrinha provocada pelo desejo desencadeado pela imaginação.*
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Imaginação: aquilo que poderia ser mais que um conto se usasses mais o corpo.*
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Corpo: objecto.*
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Objecto: objectivamente escrevendo é tudo, tudo o que é palpável, suscetível de ser visto, passível de ser usado, usufruído, admirado e por aí fora...
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COISAS AINDA MAIS PARVAS


Há risos
- e não me refiro a sorrisos ou a gargalhadas -
verdadeiramente encantadores!
O riso
- abstraíndo da imagem,
porque não a temos,
só temos o som delicado,
como se sinfonia fosse, apelativo e sensual... -
a entrar pelo canal auditivo
através de um simples telefone
e a provocar bem estar,
como se (descodificado)
estivesse a dizer: "A menina dança ou já tem par?"


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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

COISAS PARVAS


Às vezes ganho aversão a uma determinada pessoa por quem até tinha um certo apreço. Por coisas, pormenores, que aos olhos dos outros poderão parecer estupidas e insignificantes. É como se ficasse com alergia à pessoa. De um momento para o outro tudo nela me começa a irritar, a ponto de me sentir definitiva e irremediávelmente incompatibilizada. Intolerância psíquica associada a intolerância física. E é bem pior que a urticária, pois esta aparece de repente e de repente desaparece, porém, a outra não! É como aquele mamarracho que ficava muito bem no nosso corredor, mas, em determinada altura passa a estar a mais, a estorvar, a inquietar e é necessário livrarmo-nos dele para ficarmos bem! Porra!... bem sei que o exemplo é ofensivo pois trata-se de pessoas, mas não encontro outro!
É lógico que isto raramente me acontece e não me agrada. Pensei sofrer de alguma neurose mas afinal, parece-me - segundo um estudo que andei a fazer - que o ser humano tem tendência a ganhar aversão e a livrar-se daquilo que impede do gozo da felicidade plena. Ou seja, queremo-nos livres de qualquer dependência. Ao fazermos uma apreciação, ainda que inconsciente daquela pessoa, na relação connosco, ela é vista como uma "impureza", um desiquilibrio com o nosso "eu", um impedimento para a nossa plenitude.
Já me sinto melhor! Não sou neurótica! Agora só tenho de encontrar o meio adequado de me livrar do mamarracho!!!
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Live Alone - Franz Ferdinand

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

AUDIO - MEMÓRIAS

Sem idade
Blue Oyster Cult - Cultosaurus Erectus (1980)


Um prazer intemporal

Electric Light Orchestra - Discovery (1979)



Para sempre
Styx - Cornerstone (1979)
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AUDIO - MEMÓRIAS


(1979)

Muito bom!




My Sharona (live) / The knack

domingo, 15 de fevereiro de 2009

AUDIO - MEMÓRIAS


Excelente! Excelente!


- Drive / The Cars -


My Best Friend´s Girl / The Cars

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

LEVEZA


Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
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- Alberto Caeiro -

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

ESTA SUSTENTÁVEL LEVEZA!

Ando com uma energia diabólica! Sinto-me capaz de atropelar um camião.
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Nem sempre temos objectivos. Nem sempre temos objectivos significativos. Nem sempre temos vontade de ter objectivos. E nem precisamos de ter sempre objectivos.
Por vezes temos tantos objectivos que nem sabemos onde arranjar energia para lutar por eles e a carga psicológica torna-se pesada. É então que precisamos de um novo objectivo, o de nos livrarmos de alguns dos nossos objectivos. E tudo fica mais leve.
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É, pois, esta sustentável leveza que me traz uma força nova.
E a vida acontece! O trabalho torna-se mais produtivo, o tempo, contado ao minuto, sobra até para a poesia. E a vida acontece porque nós o permitimos. Abrimos as portas, para deixar sair e deixar entrar.
Renovação periódica. Tão necessária quanto o alimento.
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Há dias em que nos sentimos como se tivessemos um pássaro livre a cantar na nossa janela.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

MANIAS V


Sou uma pessoa cheia de manias!

Também tenho a mania que tenho manias mas não peneiras. Apesar de ter de andar sempre muito limpinha, cheirosa e depilada, as unhas têm de estar sempre impecáveis, os olhos pintados e não posso andar sem brincos. Mas isto são meras manias. Peneiras têm os outros.

E acho que tenho de ficar por aqui, não é? E convém!
Então pronto, já cumpri com a tarefa.

MANIAS IV



Estou sempre enamorada!

A paixão e o amor andam sempre a par comigo. Não consigo dissociar uma do outro. Porque quando amo, amo com paixão e a paixão quase sempre me leva ao amor.

E tenho a mania que só o amor nos pode levar a encontrar o rumo certo, o caminho menos espinhoso, aquele que nos levará ao fim do arco-íris onde se esconde o tesouro (segredo) da vida.

E é por causa dessa mania que vivo sempre num estado amoroso - "Doação ilimitada a uma completa ingratidão" segundo o poeta Drummond.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

MANIAS III


E por falar em lua cheia, ela está aí e sinto-me ótima.
Tenho a mania de que a lua cheia entra em mim, transforma-me, carrega-me de impulsos positivos, intuições, desejo e energia.
Mas não é uma mania, é uma realidade. Não preciso de olhar para o céu, consultar o calendário, colher informações, eu sei quando ela está aí, porque sinto.
Como diz uma amiga minha, devo ter andado pela floresta durante a idade média.
Ando por aqui e por ali... ao luar.

MANIAS II


Se estou feliz danço. Ponho música e ando a dançar pela casa.
Se estou triste ou zangada danço. Abro a pasta das preferidas - as mais agressivas - deixo-as correr e danço freneticamente para expulsar a raiva (raiva é energia).
Chego a dançar sem música, quando ela está implantada no pensamento e o corpo é estimulado por este.
E se está lua cheia, danço na praia deserta, no carro enquanto conduzo e em qualquer lugar onde isso seja possível.
Tenho esta mania de ir vivendo enquanto danço.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

MANIAS I


Hoje a vida apetece-me.
E quando a vida me apetece, tenho esta mania de não perder tempo, vivo.
Vou que já é tarde.
Voltarei num intervalo.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

ABSTRAÍNDO DA NORMALIDADE


Ela é baixinha, morena, e parece uma pintura abstracta - qualquer semelhança com o expressionismo, é pura ficção - no sentido que, vista de longe assemelha-se a uma mulher, mas vista de perto, parece uma vítima, irreconhecível, de um qualquer acidente, cujas formas só um perito pode descrever. É peluda, tem uma espécie de bigode e barba e pelos braços desnudados, podemos imaginar as partes florestais - ao que parece, não sabe o que é uma gillette, cera depiladora ou outras coisas de semelhantes funções. Usa roupas extravagantes - escolhidas não sei por qual criatura, que me parecem encomendadas a um qualquer criador artistíco candidato a um prémio de originalidade e mau gosto- que vistas de longe, ficamos logo com entusiasmo para ver como serão de perto.
Ela é casada e mãe de filhos. Não conheço o marido, mas já me tenho interrogado que homem conseguirá dormir ao seu lado sem ter pesadelos e sem ter de se penitenciar todas as manhãs pelo facto.

Esta é a parte física. Agora vou tentar descrever a parte psicológica.
Gosta de mexericos. Quando entra num local, fá-lo por forma a todos se silenciarem. Entra a falar alto para todos a ouvirem e nenhuma conversa poder prosseguir, porque ela não o consentirá. Adora criticar e, sobretudo, está sempre pronta a humilhar alguém. Aproveita o elo mais fraco e é sobre ele que recai o seu mais cruel oportunismo de ofensa. Alvitra valores superiores e defende um perfeccionismo inabalável. É inteligente, fala com sabedoria e demonstra conhecimentos.

Sempre pensei que não passava de uma frustrada a tentar evidênciar-se pelas únicas formas que consegue: um uso ridículo do hábito - que tão mal assenta neste monge - e o uso da palavra - de preferência em tom altivo e sofisticado.

Não, não estou no período pré-menstrual, nem estou carenciada. Não, não a encontrei por acaso e por acaso não encontrei aquilo que esperava para descarregar o stress. Conheço-a há anos e há anos que me incomoda porque sou obrigada a lidar com ela.
Lá terá o seu valor - parece-me uma excelente mãe e boa filha - e lá terá os seus encantos.

Mas, por mero acaso, soube há pouco que, por detrás de toda a sua dignidade, opulência e perfeccionismo, se dedica, também, a explorar crentes de parcos recursos e a fazer pequenas burlas que podem arruinar as reservas de quem tem muito pouco. E pergunto-me: para quê, com que necessidade! Vive razoavelmente, não precisa de enganar miseráveis. Ou será que vive razoavelmente à custa de enganar miseráveis? Não me parece. Mas o certo é que, nesta criatura, o que é aparência é desagradável e o que é real é um susto!


Custa-me a compreender, mas tenho de aceitar o ditado: um mal nunca vem só!

QUEM SABE!...


Amanhã, quem sabe! Talvez amanhã, talvez! Quem sabe, possa encontrar-te, debaixo de uma varanda, a fugirmos da chuva. E eu te conte, assim, como quem começa a falar com um vizinho, que nunca uso guarda-chuva. Que gosto de correr e saltitar debaixo dos beirais, como se dela a fugir ou com ela a brincar, e senti-la a escorrer no rosto. E te diga que sou uma estranha, até nas minhas próprias memórias. Que estou ali porque tranquei todas as portas para não poder regressar. Que estou a morrer para todas as coisas que não me fazem falta. E, por isso, não tenho histórias, nem uma única história, para te contar. E, depois, quem sabe, nos sentemos a tomar um café e tu me contes algumas das tuas histórias. E eu possa então, recomeçar a inventar sonhos.

Amanhã...

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A ALEGORIA DA CAVERNA



Platão tinha por hábito por na boca de sócrates as suas próprias ideias.
Este é um texto um pouco extenso para aqui, mas também é espantoso e irresistível.

"Sócrates – (…) Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Glauco - Estou vendo.

Sócrates - Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objectos de toda a espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda a espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.

Glauco - Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.

Sócrates - Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que as sombras projectadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?

Glauco - Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?

Sócrates - E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Portanto, se pudessem comunicar-se uns com os outros, não achas que tomariam por objectos reais as sombras que veriam?

Glauco - É bem possível.

Sócrates - E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?

Glauco - Sim, por Zeus!

Sócrates - Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objectos fabricados.

Glauco - Assim terá de ser.

Sócrates - Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objectos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objectos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objectos que lhe mostram agora?

Glauco - Muito mais verdadeiras.

Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?

Glauco - Com toda a certeza.

Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?

Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.

Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objectos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objectos que se reflectem nas águas; por último, os próprios objectos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e a sua luz.

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens reflectidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é.

Glauco - Necessariamente.

Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna.

Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.

Sócrates - Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?

Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.

Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?

Glauco - Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.

Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?

Glauco - Por certo que sim.

Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?

Glauco - Sem nenhuma dúvida”.
- Platão, em Livro VII de A República -
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"A grande ilusão cósmica, colectiva, é também o somatório de todas as ilusões psicológicas “individuais”."

A CAMINHO, MAS DEVAGAR COMO O CARACOL!


"Toda a existência é sofrimento. Por isso, chora a criança desde que nasce…”.

Querer o que é efémero, amar o que é irreal, desejar o que não está ao nosso alcance, conquistar o que já deveria ser nosso, trabalhar para sobreviver, procurar a perfeição...
O amor, o desejo, a ambição, o remorso, a responsabilidade...

A vida é uma roda viva de sentimentos em que o sofrimento acaba sempre presente, com maior ou menor intensidade, neste ou naquele momento.
Quase sempre somos responsáveis pelo que nos acontece, na medida em que o que nos acontece é o resultado das nossas escolhas e opções, das nossas posturas e atitudes perante os outros, a natureza e a própria vida.
A maioria dessas escolhas, postura e atitude prende-se com a referência amorosa e emocional com que nos envolvemos nas coisas, afastando a referência racional. E porque a percepção das coisas é sempre parcial, condicionada pelas circunstâncias do momento, passageira, inevitalvente, a vida acabará por nos parecer injusta vezes sem conta. E vezes sem conta, porque teimamos em não aprender grande coisa.
Cometemos os mesmos erros infinitas vezes e temos consciência disso! Mas o pior é que, tendo consciência disso, nada fazemos ou bem pouco fazemos para o evitar!

Bater com as mãos na testa...: "Burra, burra, burra! Eu já sabia que ia ser assim!..."
Mas então não aprendo nada? Então irei andar pela vida fora sempre a fazer o mesmo papel?

"O homem vai escolhendo quem quer ser mas não o que É.”

Não basta a vontade interna, é preciso que haja uma vontade externa, de atitude, de mudança. Querer e fazer.
A mudança não opera de um dia para outro. Comigo então, ela move-se a petróleo. Quero muito, mas sento-me à espera que a vontade passe. E, assim, vou vivendo devagarinho, aprendendo aqui, desaprendendo ali, melhorando isto, piorando aquilo, sempre envolta em reflexões que me chegam a enlouquecer, sobre mim e sobre os outros.

A mudança é sempre gradual. Decidi, então, começar a anotar aquilo que considero relevante seja lá o que for e para o que for. Mas anotar só não é suficiente, pois eu tenho a mania de fazer escrevinhanços e anotações em tudo que é papel e lugar, que depois abandono, perco, esqueço... anotar e colar nos sítios mais visíveis: computador, frigorífico, cama, armários... para não poder ignorar, para não poder esquecer, para não poder fechar os olhos...

Talvez assim chegue lá!...