Ontem uma amiga veio jantar comigo. Ainda ando a rir! As conversas foram tão hilariantes que vou tentar reproduzi-las o mais fielmente possível com a ajuda de coisas que fui escrevinhando num bloco que tinha sobre a mesa.
I.
- Ontem quando o F me levou a casa, repentinamente, confessou-me que tem uma grande atracção por mim e espetou-me um beijo na boca. - Contou-me ela. - Fiquei lixada pá! Ele é meu amigo! Não estava à espera!
- O Verão tem destas coisas! - Disse eu. - Quem diria! E como é que reagiste?
Ela passou a língua pelos lábios, mordeu-os e respondeu: - Foi doce.
- Ah! Então gostaste!
- Eu não disse que gostei. Eu disse que foi doce.
- E o que queres dizer com isso?
- Quero dizer que não foi amargo.
- E?...
- ... E que eu gosto mais dos beijos agridoces, sabes, aqueles que não são doces nem amargos, são beijos despenteados, selvagens...
II.
A meio do jantar tocou o telefone dela.
- Vem comer uma piza comigo. - Pediu ele.
- Não posso. Já estou a jantar aqui com a minha amiga. - Respondeu ela.
A partir daí a inquietação foi evidente.
- Tenho de lutar contra esta paixão que me anda a arruinar a vida. - Disse-me ela. - Quando eu o quero comigo ele nunca está, quando me afasto vem a correr atrás de mim! Diz-me sinceramente, achas que ele sente alguma coisa por mim?
- Talvez sinta. Ou talvez não. Esquece esse fulano. Esquece tudo o que te faz infeliz. Deita tudo para trás das costas. Que martírio! És masoquista? - Disse-lhe.
- Não consigo porra! Só queria saber se ele gosta de mim. Ás vezes sinto que sim, ás vezes sinto que não! E isso mata-me! - Exclamou. - O que é que tu achas? Diz-me lá.
- Levas a vida a perguntar-me isso! O que eu acho é que quando se gosta demonstra-se que se gosta, diz-se que se gosta e age-se em conformidade. - Disse eu. - Porque o amor é institivo, não é racional. E tudo o que é institivo foge um pouco ao nosso controlo. O amor não se controla, ou é ou não é. Se ele gosta de ti quer estar contigo, precisa de estar contigo, procura-te. Ele procura-te? - Perguntei.
- Convidou-me para ir comer uma piza... com ele e com a filha. Quando está sózinho foge de mim. Filho da mãe! Tens razão! Ele não gosta de mim!
- Eu não disse isso. Acho que o melhor é tirares isso a limpo com ele. - Aconselhei. Aconselho sempre tudo aquilo que eu não faço!
Daí a pouco ela saiu toda empolgada e disse-me que ia a casa dele.
"Hoje tem de acontecer alguma coisa."- Disse-me ela com os olhos a brilhar - se calhar por causa do vinho.
III.
O meu telefone tocou: - Amiga, posso voltar para aí? - Pediu ela a chorar. - Estou na merda!
Voltamos para a mesa da cozinha.
- Quando cheguei à porta dele liguei-lhe a dizer que estava ali e o sacana pediu-me que me fosse embora porque tinha muito que fazer. Eu disse-lhe que não o conseguia entender que precisava que ele definisse a nossa relação e o sacana disse-me que estava sem tempo para conversar e desligou-me o telefone.
Ela estava desalentada.
Que desolação! Porque é que o ser humano tem esta necessidade de comprovar aquilo que é óbvio? Porque é que tem de xafurdar na merda para se poder erguer?
- O que é que os homens querem? Sabes-me dizer? - Perguntou-me.
Dei um trago no vinho. Retardei a resposta, como se resposta houvesse. Disse, então, por fim: - Não sei. Nunca soube o que é que os homens querem! E penso que eles também não o sabem!
IV.
- Tenho tudo de pantanas! A minha casa está de pantanas! A minha profissão está de pantanas! A minha conta bancária está de pantanas! O meu corpo está de pantanas! O meu coração está de pantanas!... - Disse ela. - Tudo por causa de um homem! Somos biliões de pessoas e cada um de nós é único. Como é que em bilões de pessoas vamos encontrar a nossa alma gémea? - Perguntou agarrada à garrafa do vinho.
- Não há almas gémeas. - Afirmei eu.
Ela olhou-me com o rosto constrangido e triste:
- Não há! Não me lixes! Por favor, a esta hora da noite não me tires o sonho! Toma lá a garrafa. Acho que não estás a beber o suficiente!
V.
- Filha da puta do vinho! - Exclamou ela a encher o copo mais uma vez.
- Acho que não devias beber mais, já bebeste bastante. - Disse-lhe eu.
- Cala-te! A bebida exalta-nos a alma, liberta-nos. E eu, hoje, preciso de me libertar. Tudo por causa de um individuo que está de mal com a vida! De um individo que é triste e rancoroso. Uma pessoa triste e rancorosa é um veneno, é tóxica. Tenho de concluir que eu estou tóxico-dependente. E nem sequer tomo drogas!
VI.
- Do que é que os homens têm medo? - Questionou ela. - O cabrão tem medo da vida! Tem medo de ser feliz! Tu acreditas nisto? Um dia diz que gosta muito de mim. Outro dia diz que não gosta de mim o suficiente! Um dia diz que me vai fazer muito feliz. Outro dia diz que não precisa de ninguém que é mais feliz sózinho! tu acreditas nisto? Do que é que os homens têm medo?
- Quando as pessoas se habituam à solidão, percebem que estando sós podem ser menos tristes. A solidão magoa-nos, mas as pessoas podem magoar-nos muito mais. Por isso, uma pessoa solitária, habituada à sua solidão tem muito mais dificuldade em arriscar, o medo da decepção pode se maior que o desejo de arriscar.- disse eu.
- Tens razão! A solidão nunca nos decepciona. Somos só nós e nós! Dói concluir isto! - Disse ela enquanto voltava a encher o copo de vinho. - Ele vive como um cão abandonado! O sacana saboreia o sofrimento, porque o sofrimento não o trai, esse é certo, é fiel, não tem incógnitas, já não o pode surpreender. Os verdadeiros solitários têm medo de viver, têm medo de dar um passo em falso. A solidão é saborosa porque é certa. Não nos lhes dá surpresas! Filhos da mãe!- Concluiu.
- Mas a solidão é um vazio. A solidão é uma dor miudinha que nos vai atrofiando. Eu adoro a solidão. Quando posso estar sozinha, completamente, sem horários, sem responsabilidades, sem compromissos, como hoje, sinto um prazer imenso. E nunca quero perder essa capacidade e essa possibilidade de estar comigo mesma ou de estar com uma amiga. Mas não quero a solidão como rotina. Quero partilhar. Para mim a solidão não é uma opção. - Disse eu.
- Mas tu dizes que não há almas gémeas! - Frisou ela.
- Entendo que não há almas gémeas, mas acredito que há almas. - Expliquei.
- Que queres dizer com isso?
- Que há almas que se cruzam, que se entendem e que se podem encontrar de vez enquando.
VII.
- Eu não te entendo! - Disse-me ela. - Vives em excesso de velocidade por dentro e por fora não queres passar da segunda? Se fosse eu, a esta hora, já ia estrada fora, em quinta.
- Eu sei que se fosses tu já tinhas metido a quinta. Mas tu és louca! Se calhar eu sou uma sacana que tem medo de arriscar, uma sacana que tem medo de viver! Mas um dia destes faço-me à estrada e meto a quinta. E seja o que deus quiser ou o que não quiser. Afinal só tenho um coração e só tenho uma vida. E agora conseguiste deprimir-me! Arre!
- Temos de ser filhos da puta para equilibrar as coisas! - Disse ela.
- Como assim? - Perguntei-lhe.
- Temos de morder a vida.
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Já passava das três horas da matina quando ela se foi embora. De entremeio quase choramos e até partimos o estomago de tanto rir! Só as paixões é que nos permitem momentos únicos como estes!