segunda-feira, 13 de junho de 2011

POESIA INTERESSANTÍSSIMA!



RIDÍCULO

E assim a minha alma
começou a perder aulas,
a fechar-se em canivetes,
a deixar crescer a sombra.
Já sabia que, na vida,
só depois do exame
é que chega a lição.

Fui servido ao caprichoso
ziguezague do acaso;
que me trouxe quase inteiro a
este pálido caderno,
onde toda a matemática
se ri do meu intento
de somar a não o nada.

"Vista de Um Pátio seguido de Desordem", Relógio d'Água, Lisboa, 2003


BRIEF ENCOUNTER - DAVID LEAN (1945)

Quando duas almas, e digo bem,
se enamoram uma da outra,
estamos perante um caso fragrante
de romantismo inglês. A princesa,
o dragão e o senhor chapéu de coco:
tanto basta para um drama
em que o remorso é o artista
principal. São assim os infelizes,
não conseguem partir um prato
sem ficar tolhidos pelo sentimento
de culpa. E por isso, sentem eles,
o melhor é estar quieto na berma
do sofá, e ter medo de tudo,
de tudo menos da infelicidade.

 "Movimentos no Escuro", Relógio d'Água, Lisboa, 2005


DIZIAS QUE GOSTAVAS

Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.

"Vista de Um Pátio seguido de Desordem", Relógio d'Água, Lisboa, 2003



Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
Durante muitos anos eu fui hóspede do frio.
Enrolava cigarros para depois da chuva
e não tinha sonhos, somente pesadelos.

O mais recorrente era o do nevoeiro:
ninguém me via, era inútil mandar vir
uma caneca de cerveja, no café.
O meu dinheiro ninguém o aceitava,
ficava parado, fazia de mim um acumulador.

Como nunca saía de casa, não sabia falar
senão com mortos. Parecia-me magia
saber responder boa tarde como vai
à saudação dos vizinhos, pedir do vazio
ao homem do talho, perguntar as horas.

Tempos amargos esses, e hoje,
a mesma coisa, a mesma solidão.
Com a diferença de que sou mais forte agora,
vou à piscina duas vezes por semana,
escrevo poemas para não adormecer.

"vista para um pátio seguido de desordem", relógio d´água, 2003


- Do poeta José Miguel Silva -

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