sábado, 28 de novembro de 2009

QUIÇÁ



Ela levantou-se tarde. Fez alongamentos na expectativa de alongar o dia. Andou a correr de um lado para o outro, os minutos e horas a correrem à sua frente a uma velocidade frenética, na esperança de lhe acompanharem o ritmo. Tanta coisa para fazer e um dia apenas, doze horas, sim, que o resto já se havia consumido entre o sono e o intervalo de o tanta coisa para fazer! Subiu e desceu, apressadamente, pelo dia afora, como quem conduz por uma estrada deserta para chegar a uma cidade habitada. E tanta coisa inútil, tanto minuto desperdiçado, tanta inanimidade no movimento dos gestos! Chegou ao fim da tarde cansada e cheia de sono. Já tinha feito uma variedade de coisas. E não havia feito nada que fosse alguma coisa! Escurecera sem dar por isso. Não há paixão tão profunda como uma noita profundamente escura. Mas nem sequer era noite ainda. Tomou um banho quente.


O dia passou, agora é a hora de reinventar o tempo, refazer o corpo cansado num corpo jovem e perfumado. Estiraça-se no sofá de copo virtuoso na mão, a música a tocar, à espera da chegada do amante. Enquanto isso, deixa-se embalar por um desejo vertiginoso, à beira da indecência. O sangue a ferver-lhe no vinho, um grau mais elevado a cada minuto que passa. O coração já não ferve, mas o corpo atinge temperaturas elevadas. É mais indolor assim. Facilita a comédia, onde já não cabe o drama.


O amante é um rapaz bonito como um poema. Tem um corpo com todas as características de um postal de aniversário com os dizeres: "um momento feliz e que se repita muitos e longos anos". É saudavelmente divertido. Não apresenta sinais de fome e tem um discurso calmo de quem sabe aguardar pela refeição. Não há sentimentalismos e ambos se conhecem como se sempre tivessem vivido nus. Não há indecisões quando os corpos se encontram. É como um regressar ao sítio onde se nasceu - não é uma obrigação, mas uma necessidade quase transcendental. A noite balança agora, inteira, na extremidade dos seus corpos. Não há paixão mais profunda que uma noite profundamente ondulante. Ou talvez...

.

Canção do Mar - Dulce Pontes

Nenhum comentário: