Está um frio amargo. Este frio que traz à memória o sabor da indiferênça. Daquela indiferênça com que, pela manhã, esquentavamos aquilo que à noite fora o amor refogado com picante. Fingia eu, a indiferênça - que aquilo ruminava dentro de mim sem saber o que fazer do que restava. Mas isto nem sequer vem para o caso
Está um frio tão desgraçado que os únicos pensamentos que me permite são misérias e tristezas. Para não contrastar com uma certa revolta que trago a minar-me as vísceras. Ao medo chamo eu revolta. Como o meu cão pequenote que tem o hábito de se atirar e ladrar desalmadamente aos cães grandes. Mas isto também não vem ao caso.
Este frio constipou-me sériamente e pôs-me a chá torradas e pastilhas de nicotina. Dói-me tanto o peito que me faz lembrar os apertos sofridos das horas tortuosas em que esperava notícias tuas. Em vão. A garganta inflamada pelas palavras acumuladas, que tinha para te dizer. Sim, também me doí muito a garganta. E tudo passa pela privação: as palavras que nunca te disse, aquelas que nunca te direi e os cigarros que não posso fumar. Porém, deixa-me dizer-te que isto nem sequer vem ao caso.
O frio dá-me uma certa agonia. Atrofia as possibilidades de um pedaço de vivência mais acalorada. Como se aquietasse os desejos. Esta noite deitei-me com os pés gelados e não consegui aquecê-los, o que me aborreceu bastante. Como se fosse um travão, uma impossibilidade de sonhar. Como quando dormia contigo e tu te viravas para o outro lado e adormecias. E eu ficava acordada a controlar os pés gelados, para que não tocassem em ti, pois seria pior que um choque eléctrico, talvez não gostasses. Nunca agarraste nos meus pés gelados e os meteste entre as tuas pernas para que eles aquecessem. Pois não! Não sei porque nunca o fizeste!É uma daquelas coisas que sabe tão bem como comer um gelado no Verão. Eu bem sei que tenho sempre os pés frios, talvez temesses que isso se tornasse um hábito. De facto, só as pessoas muito íntimas aquecem os pés umas das outras. E nós nunca fomos muito íntimos. Soube logo que nunca o seriamos, deixares-me dormir assim, com os pés gelados! Mas isto é que não vem mesmo ao caso.
Tenho esperança de ver surgir o sol um dia destes - era mesmo isto que eu queria dizer.
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Deeper down - Wilco
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