terça-feira, 26 de agosto de 2008

MEMÓRIAS QUE ME PERSEGUEM



Junho de 1998
O meu irmão telefona-me e diz-me que tem uma notícia importante a dar-me. Diz-me que a minha mãe foi fazer uns exames de rotina e que lhe detectaram uma leucemia. O meu coração para de trabalhar durante uns segundos. Depois diz-me que não é grave, que tem tratamento. Ainda hoje não sei descrever o que senti.
Outubro de 1998
Fui viver temporáriamente para a cidade do Porto. A minha mãe necessitava de fazer radioterapia e eu era a filha que tinha disponibilidade para a acompanhar. Instalamo-nos numa residêncial, junto do Hospital de São João. O meu filho ainda não tinha cinco anos e ficou com o pai.
A minha mãe não sabia que sofria de leucemia. Todos os dias lidavamos com casos terminais, mas ela sentia-se muito grata por não estar como aquela gente. Tinhamos muita pena das pessoas que ali faziam tratamento diário e com quem começamos a manter um certo relacionamento afectivo. Os tratamentos tinham início às 9H00 da manhã e estendiam-se até ás cinco da tarde. Eu almoçava na cantina do hospital e matava o tempo a ler e a conversar com enfermeiras, pacientes ou familiares destes. Por vezes passeava pela cidade, utilizando os transportes públicos. Jantavamos no restaurante e voltavamos ao Hóspital às 8H00, onde permaneciamos até ás 9H30. Nesse período lidei com o que há de pior- o sofrimento das pessoas, a dor, a falta de esperança, o fim. De noite a minha mãe gemia e eu tinha pesadelos.
No final do mês de Outubro, tinha de regressar ao trabalho e a minha cunhada foi substituir-me. Como se mudassemos de turno. Fomos procurar uma das enfermeiras que habitualmente fazia o tratamento à minha mãe. Queria apenas dizer-lhe que a minha chunhada ficava a substituir-me. Não sei o que deu na mulher! Estavamos num dos corredores do Hóspital e, de repente ela virou-se para a minha cunhada e disse: "Acho que a sua cunhada é muito ingénua. Ainda não percebeu que a mãe, coitadinha, está muito mal, tem os dias contados." O sangue parou-me nas veias. Atrás de mim estava um daqueles bancos compridos, fiz marcha atrás, sem ver, e caí sobre ele. A cabra continuava a falar. Eu não tinha voz. Balbuciei algumas palavras, não me lembro quais, e a puta disse-me que a minha mãe estava a morrer! Ainda me lembro do rosto dela. Tenho a certeza que ainda hoje a reconheceria em qualquer lado!
Não me lembro do que se passou a seguir. Dei por mim junto à Torre dos Clérigos, encharcada dos pés à cabeça. Chovia a potes e eu cambaleava por entre a multidão de um lado para outro, sem saber para onde me dirigir! Tudo estava cinzento e nublado. A cidade parecia estranhamente bela, mas o mundo parecia um caos! Apanhei um autocarro rumo a Lisboa. Estava molhada, fria e sentia-me acabada!
Ainda hoje penso nesse dia! E pergunto-me: "Que direito tem um ser humano de dizer a outro que a sua mãe está a morrer, assim, de forma fria e cruel?!" Ainda hoje detesto aquela mulher que me ofereceu um dos dias mais terríveis da minha vida.
Março de 1999
Fui ao Hóspital de São João, visitar a minha mãe. Tinha sido operada aos intestinos devido a um cancro que lhe apareceu de repente, porquanto estava sem defesas desde a leucemia. Fui sózinha. Sentei-me a seu lado e fui conversando. Ela dizia umas palavras, poucas, depois fechava os olhos e ficavamos em silêncio. levei uma catrafada de fotografias do meu filho, mas ela mal conseguia olhar para elas! Ficava enjoada quando mantinha os olhos abertos por mais de um minuto. Ela adorava o meu filho e mal conseguia olhar para as fotografias! Mas perguntou-me como estava o meu casamento. "Vai andando..." - disse-lhe eu - "Mal!" - Disse-me ela. E de olhos fechados, a segurar-me na mão pediu-me para fazer tudo para salvar o meu casamento.
Fiz a vigem de regresso a Lisboa sempre a chorar.
A minha mãe morreu no dia 26 de Agosto desse ano, 1999, faz hoje 9 anos.
O meu casamento morreu alguns anos depois.
Não consegui salvar nenhum deles!
.
A vida é uma sucessão de factos. Só herdamos as memórias para sempre. Tudo o resto se perde.

2 comentários:

Anônimo disse...

De vez em quando passo pelo teu blog, não tenho muito tempo.
Desta vez tive que escrever, não deixes que a amargura te tolde as memórias de felicidade.
O outro dia escrevia, algo do estilo, "divorcia-te da vida que não queres".

Bjo e força, Xeltox

espinhos e outras flores disse...

Xeltox! Que agradável surpresa! E sempre com palavras "brilhantes"!
Estou bem. Praia, sol, mar, música, diversão e algum desalento à mistura.
Sabes, é a nostalgia e o drama que me inspiram na escrita, por isso deixo transparecer o lado negro, a amargura. Os momentos de felicidade vivo-os, recordo-os, mas raramente sinto necessidade de escrever sobre eles. Escrever é um impulso, um chamamento, uma libertação - expulso a amargura de dentro de mim; a doçura guardo-a ou ofereço-a pessoalmente.

Gosto de saber que ainda passas por aqui. Um beijo enorme e tudo de bom para ti. Volta sempre.