segunda-feira, 25 de agosto de 2008

RECORTES DA VIDA II




Ele começou a reparar que os braços dela ficavam esticados e inertes ao longo do corpo, a terminar em mãos moribundas. Os lençóis não se mexiam. E os olhos dela morriam no tecto, num qualquer ponto fixo onde o branco não emanava luz que o iluminasse. Deitava-se a seu lado à procura de um sinal de vida, que tardava em manifestar-se. Depois ela virava-se, dobrava as pernas uma sobre a outra e fingia dormir. Os olhos dele procuravam no tecto o ponto. Mas apenas um ponto de interrogação descia do tecto, entrava-lhe nas pupilas e instalava-se no cérebro.
Amava-a tanto! Tanto! Tinham-se casado há um ano e ela era todo o seu investimento emocional.
Agora ele sabe que o ponto no tecto tem um rosto. Um rosto que não é o dele.
Ele agora mergulha de cabeça num rio de angustia que corre para o futuro. Debate-se contra a corrente. Tem momentos que se deixa arrastar sem qualquer resistência na suposição de uma morte rápida. Por vezes pensa que vai matá-la, estrangular o pescoço fino e belo, entre os seus dedos, numa carícia bárbara que só terminará num último suspiro. Porque, mais profundamente cruel é a dor que lhe nasceu no peito, de um dia para o outro, sem que pudesse prevê-la. Não sabe o que faz. Vive num emaranhado de pensamentos que lhe queimam as memórias e o presente. Movimenta-se como um louco sem qualquer motivação. Entra em casa julgando ouvi-la, pensando vê-la sentada no sofá, com aquele sorriso de quem o espera feliz. Procura-a por todo lado e nunca a encontra. Volta a sair. Bate a porta com toda a força. E jura que, quando voltar a entrar, se a encontrar ali, a vai matar. Depois deambula pela cidade, como um espectro.
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A que cheira o amor quando morre?

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