
Nos dois primeiros anos da faculdade, tive uma amiga que se destacava dos demais pelas excelentes notas. Para além disso, tinha um óptimo aspecto, um namorado impecável e uma família exemplar. Era bem apresentada, serena, equilibrada, caseira, sociável, não bebia nem frequentava locais noturnos. Como partilhavamos um apartamento, comecei a aperceber-me que tinha também uma outra vida, procurava sexo com desconhecidos, romances baratos e aventuras estranhas. E esse aspecto secreto passava completamente despercebido a quem a conhecia.
Um certo dia, não me contendo, confrontei-a com a situação, ao que ela reagiu com toda a tranquilidade fazendo um uso incontornável das palavras (mais ou menos estas): "Tu és aquilo que aparentas ser. Tu podes ser o que quiseres, mas sempre serás aquilo que aparentas. E nunca serás muito mais do que isso. Eu sou para os outros aquela que eles conhecem. Não sou mais do que isso e é isso que eu pretendo continuar a ser, entendes?" - Entendi. E calei-me, para sempre.
Mas hoje deu-me para pensar nisto.
Afinal quem somos nós, quem sou eu?
Para os outros não sou mais do que aquilo que eles podem ver. As pessoas com quem me relaciono ocasionalmente por questões sociais ou profissionais, o que é que conhecem de mim? O quanto conhecem de mim? Serei eu uma mera aparência?
E aqueles outros com quem me relaciono mais intimamente, conhecem-me para além daquilo que eles podem ver? Conseguirão ver dentro de mim? Sim. Mas vêem-me com os olhos deles. E nem sempre me verão com clareza. Por outro lado nenhum olhar é igual a outro. Então, eu posso nunca passar de uma mera aparência!
Na verdade, eu sou para os outros aquilo que aparento ser: aquilo que eles vêem mais a soma das caracteristicas que eles me acrescentam ao fazerem um juízo de mim - porque se faz sempre um juízo sobre o outro. E é isso que, na verdade eu sou - para o outro.
Daí que, ela estava certa ao afirmar: "Tu és aquilo que aparentas ser."
Mas eu não sou apenas isso - ou nem serei isso - se me abstraír da mera aparência. "Tu podes ser o que quiseres..." Pois gozo da liberdade de aparência meramente física, a qual está condiconada pela moda, gosto pessoal e outras exigências, mas também gozo da liberdade de construir a minha pópria personalidade, também ela, em certa medida, condicionada por factores familiares, socias e genéticos, entre outros.
Porém... "... sempre serás aquilo que aparentas". Pois para o outros não sou senão aquilo com que me apresento aos outros. E sobre essa aparência, eles farão juízos de valor sobre mim. E porque é esta que eles conhecem, é esta que eu sou: "Eu sou para os outros aquela que eles conhecem. Não sou mais do que isso..."
A questão que me coloco - percebendo que ela estava certa no seu raciocínio - é se nunca serei muito mais do que isso -"E nunca serás muito mais do que isso."
Na verdade, eu sou também aquela que - eventualmente - só eu conheço - e às vezes não muito bem. Eu sou comigo mesma. Os outros nunca me verão como eu me vejo. Então eu sou uma outra que os outros não conhecem ou conhecerão mal. O meu mundo interior é imenso e é esse que realmente me define. Mas define perante quem senão perante mim? Mas eu não sou muito mais esta do que aquela que os outros conhecem? Se é comigo mesma e com os meus pensamentos que eu passo todo o tempo, eu tenho de ser muito mais esta do que a outra.
Sucede que a vida vive-se e desenvolve-se em função dos outros. E para os outros eu nunca serei muito mais do que aquilo que eu sou para eles.
Penso que era aqui que ela queria chegar: que vivendo nós em sociedade e tão demasiadamente em função dos outros, o que conta essêncialmente, é a aparência.
Devemos estar certos que as aparências não só iludem: elas acabam por ser a realidade.
UFA!! Pensar custa!