quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

BONDADE


A virtude que mais aprecio nas pessoas é a BONDADE: brandura, benevolência, qualidade de quem é bom, de quem é generoso.

Acredito que, se todos fossem bondosos, não haveria pobreza extrema, nem fome, nem frio, nem necessidades de vulto. Bastava que cada um fizesse uso diário da bondade, na proporção das suas possibilidades, para que a sociedade funcionasse de outra forma.

A pessoa mais bondosa que conheci foi a minha mãe. Filha de mãe solteira, miserávelmente pobre, dada ao trabalho com apenas 12 anos, sem qualquer ano de escolaridade, com sete irmãos mais novos para ajudar a criar. Fez-se adulta, casou, teve quatro filhos, fez-se empresária sem saber ler ou escrever e ajudou a criar todos os irmãos. Construiu casa própria, deu educação superior aos filhos e viveu sem dificuldades económicas.

Todos os dias a minha mãe matava a fome aos sem abrigo lá da terra. Sopa, pão, batatas, arroz e algo mais que ia confeccionando sempre em excesso, já com essa intenção - julgo eu e acredito que sim. Faziam bicha á porta da tasca.

O Zé, homem de quarenta e tal anos, alcoólico, vivia com mais quatro individuos numa casa cuja construção nunca fora acabada por falta de verbas e, dada ao abandono, sem reboco, portas ou janelas. O Zé não tinha família, dizia ele, mas nós bem sabiamos que todos o haviam abandonado por via do vício. Cheirava mal que se fartava! Porra, ainda me lembro bem como tinha de conter a respiração para o poder suportar! Bafo de alcoól destilado, e mijo e surro, tudo à mistura!
O Zé pedia esmola, mas o que ganhava só chegava para o vinho. Lá ia o zé todos os dias espreitar á tasca. O meu pai escorraçava-o como a cão com pulgas, mas o Zé escondia-se, pois bem sabia como tudo funcionava. Depois esperava que eu aparecesse e lhe fizesse sinal. A minha mãe dizia-nos: - Vá, chamem o pai, entretenham-no, não deixem vir para aqui." E nós obedeciamos. E lá ia a minha mãe entregar o farnel ao Zé. Depois ela chegava ao pé de nós com aquele ar comovido e dizia: - "Tenho a certeza que o zé ainda não comeu nada hoje. Coitadinho, é um miserável, ninguém quer saber dele! Se calhar é por isso que ele está neste estado. Vá, já podem largar o pai." - E tudo se repetia diáriamente, com o Zé, o Manel, o Marreco e outros bebedos que por ali passavam.
A minha mãe tinha muita pena dos sem abrigo. Os invernos lá na terra eram a doer, caíam geadadas de deixar tudo branquinho como se de neve se tratasse, mas não era neve, era gelo. E ela arranjava cobertores para todos. Nunca conheci uma pessoa que tantos cobertores comprasse! Deve ser por isso que o meu pai está sempre a dizer: - "Tenho a casa cheia de cobertores. Mas que mania a da tua mãe, estava sempre a comprar cobertores! Nem sei onde os guardar! O que é que eu faço a tudo isto?" - "Dê-os aos sem abrigo. Acho que era para isso que a mãe os comprava." - Respondeu-lhe eu.
O zé só tinha quarenta e tal anos. Levava os dias a beber e dizia que só comia o que a minha mãe lhe dava. foi encontrado morto numa manhã fria de inverno, enrolado em dois cobertores que também a minha mãe lhe havia dado, sobre uma cama feita de papelão. A minha mãe chorou como se lhe tivesse morrido um familiar. E creio, deve ter sido a única pessoa sem abrigo que esteve no miserável funeral do zé.
A bondade de uma só pessoa pode não salvar uma outra pessoa, mas a bondade de muitas poderia fazer a diferênça.
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Rome Wasn't Built in a day - Morcheeba